Tenho
muita saudade da máquina de escrever. Bater nas teclas com força e
ouvir o tec, tec, tec. No fim da linha empurrar o braço mecânico
pra esquerda e começar de novo. A, S, D, F, G. A, S, D, F, G.
Tenho
saudade do telefone de disco. Eu tinha uma prima que usava três
dedos pra discar os seis números. Ela tinha unhas longuíssimas
cobertas de esmalte vermelho e entre o indicador e o médio ainda
segurava o cigarro. Elegantérrima. Tenho saudades do tempo em que
fumar não era politicamente incorreto, apenas fazia mal pra saúde.
E do cheiro do óleo bronzeador que também entrou na lista dos
vilões sociais. Óleo de urucum, Rayito de Sol e outros menos
cotados.
Tenho
saudades da agenda de papel. Todos os telefones anotados com letra
caprichada. Tenho saudade até de perder tempo passando a agenda a
limpo quando a lista de amigos ficava maior que o número de páginas.
Ou quando era preciso apagar alguns nomes. Nunca deletá-los.
Tenho
saudade de fazer pipoca na panela. O milho estourava no óleo quente
soltando aquele cheiro de sala de cinema. Poc, poc, poc. Também
sinto falta do ovo batido em ponto de neve no braço. Sem parar pra
não desandar a receita. E tenho saudade da vitrola, da agulha e do
vinil girando em três rotações: 33, 46 e 78. Do chiado do velho
LP, do drama de um disco arranhado.
Tenho
saudade da manga espada, buraquinho aberto na casca pra beber o
caldo. Da goiaba de vez colhida no pé, na primeira mordida vinha
metade do bicho que morava lá dentro. E do morango suculento e com
gosto de morango. Os morangos de hoje são lindos, mas não têm
caldo nem sabor. Tenho saudade de esperar um mês inteiro pela
próxima edição do meu gibi preferido e de colecionar figurinhas no
álbum. Coladas com cola Tenaz. Cole e descole se for capaz.
E,
acima de tudo, tenho saudade de esperar uma semana inteira pra que as
fotos fossem reveladas. Ah, como eram bacanas as máquinas
fotográficas não digitais e os rolos de filme rebobinados. Saudade
de chamar as coisas de bacanas. Saudade de quando as lembranças não
eram instantâneas.
Dito
isso, devo confessar que não sou muito boa de memória. Esqueço
nomes e fisionomias. Só decoro instantaneamente números e letras de
música. E cheiros. E sons. E dores. Mas lembro-me destas últimas
pela sensação que produziram, quase nunca pelos personagens que as
provocaram. Hoje agradeço essa falha como um dom.
Tenho
saudade do Neutrox amarelo, do pac man, da agenda Cassio, do Leite de
Rosas, do sabonete Phebo, chiquérrimo. E ter saudade não é querer
ter tudo isso de volta. É apenas a confortável sensação de ter
idade pra ter saudade do que não está na moda, do que já passou,
do que não existe mais e ainda assim era bom simplesmente porque me
fazia bem. É ter experimentado todas as mudanças e ter aprovado
algumas, detestado outras.
Tenho
saudades do bom português, do romance bem escrito publicado em
edição de capa dura. Dos políticos que tinham vergonha de serem
tachados de corruptos, ainda que fossem. Dos eletrodomésticos que
duravam tanto quanto um casamento, quase a vida inteira. De andar de
carro com a janela aberta. Ter saudade é um privilégio. Minha
memória não é lá muito boa, mas é sábia. Guarda com nitidez as
delícias e arquiva os rancores em gavetas trancadas que eu nunca me
lembro de abrir.
Ana
Paula Padrão, jornalista. Publicado originalmente na revista IstoÉ.
Retirado
do Blog Tio Colorau
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